HDSLR Cinema – Uso Prático em Ficção

spot_imgspot_img

Autor: Marcelo “Tintin” Trotta

No começo de Novembro deste ano tive a oportunidade de fotografar o piloto de uma série, “Brilhante Futebol Clube” do Kiko Ribeiro, que foi um dos vencedores da primeira etapa do edital FICTV / Mais Cultura, promovido pelo Ministério da Cultura, Cinemateca Brasileira e TV Brasil. O piloto foi produzido pela Mixer, e usamos a câmera Canon 5D MarkII. Foi uma experiência de ficção que durou uma semana. Aqui divido alguns pensamentos sobre esse novo formato de Cinema Digital: HDSLR, focando especificamente na 5D MarkII.
O COMEÇO

O advento do Cinema Digital tem mesmo sido um impulsionador prodigioso do aparecimento e aprimoramento dos equipamentos de filmagem. Enquanto os fabricantes do cinema foto-químico correm para não perder mais espaço para o digital, fazendo câmeras cada vez melhores, negativos de baixa granulação e grande latitude.  As empresas que investem no ramo digital enfrentam outros desafios: o primeiro, e mais óbvio, é conseguir uma imagem com uma cara “cinematográfica”. Temos vários fabricantes com diferentes tipos de câmeras de cinema digital, desde os que vêm da produção de câmeras para televisão (CCD, vários ajustes de processamento da imagem na câmera, gravação de áudio profissional on-board, etc) até aqueles que já partiram para um esquema mais próximo do cinema tradicional (CMOS, imagem “base”, sem muitas possibilidades de processamento na câmera, uso das extraordinárias lentes de Cinema, como a RED, SI-2K, Arri D-21, Panavision, Genesis, etc).

Em meio a muitas possibilidades, de mansinho, surgiu uma nova categoria: o Cinema Digital feito com câmeras fotográficas digitais. O que era a princípio um bonus feature ganhou enorme importância com a chegada da Canon 5D MarkII. Em pesquisa com os usuários, a Canon descobriu que jornais passaram a pedir aos fotojornalistas que fizessem também imagens em vídeo para colocar no sites dos jornais. Ter o recurso do vídeo na mesma câmera que fazia as fotos pareceu a solução ideal.

O que provavelmente a Canon não imaginava é o sucesso que a câmera iria se tornar no âmbito da captação de imagens em movimento. Muita gente ficou encantada com o desfoque, maior do que o de Super35mm já que o sensor full de 35mm Still é bem maior do que o de 35mm cinema. Apesar da pouca latitude e de contar com uma compressão bem severa na gravação das imagens, o look da câmera é agradável e pode se conseguir um resultado bem interessante em situações em que o contraste da cena “cabe” na latitude da câmera.


TECNICAMENTE FALANDO

A Canon 5D MarkII usa um sensor CMOS bayer para os três canais de cor (assim como a RED, Arri D-21 e SI-2K), ao contrário das câmeras 3 CCDs que têm um sensor para cada canal de cor. Isto quer dizer que há uma subamostragem de cor e a câmera tem que fazer uma interpolação para completar a imagem.

Quanto à latitude, diante do meu teste dá pra dizer que temos por volta de 6,5 a 7 stops utilizáveis. Claramente, ao escolher um ISO mais baixo, aumentam os limites utilizáveis dos extremos de altas e baixas luzes. Acima de 800 ISO, por exemplo, as baixas luzes começam a ficar bastante ruidosas e com artefatos eletrônicos. Com o ISO mínimo que é 100, a imagem fica bem melhor e até apresenta uma pequena tolerância para correcão de cor na pós-produção.

No geral, é melhor conseguir a imagem o mais balanceada possível já na câmera. Devido à compressão H.264 long-GOP, à subamostragem 4:2:0 e os 8 bits por canal, não dá pra fazer muita coisa na correção em pós – logo os artefatos da compressão começam a aparecer.

Para ajudar nesse território, fui experimentando e achei uma regulagem em que a latitude fica melhor sem ter uma imagem muito lavada. Nos ajustes da câmera, baixei um pouco o Contraste, o Sharpness e a Saturação. Para ter um bom resultado é bom se encaixar dentro dessa limitação de latitude da câmera (assim é com o Ecktachrome, com a filmagem prevendo bleach-by-pass, etc).

O desfoque realmente é lindo, lembra 70mm e até acaba ajudando na questão da latitude pois as vezes você tem um objeto muito superexposto ao fundo mas o desfoque torna a imagem bem mais agradável do que superexposição indesejada no universo das câmeras de 2/3 de polegadas em que há pouco desfoque do segundo plano. Mas esse desfoque também gera seus problemas.

O Assistente de Câmera tem que fazer muito bem suas marcas de foco. Nos movimentos de câmera ou aproximações de personagens em situações tele, a situação é bastante crítica.  A não ser por conta de algum efeito especial de separação focal radical, trabalhar por volta de T2.8 é o mínimo pra não ter que ficar repetindo takes pelo foco. As lentes de still autofocus também não são muito adequadas para filmagens de imagem em movimento com correções de foco durante o take, porque simplesmente não foram desenhadas para esse uso. Assim, para fazer o autofoco rapidamente na hora de tirar uma foto, essas lentes têm o curso do anel de foco bem curto, o que tira um pouco da precisão na hora de filmar uma cena com correção manual. As objetivas manuais normalmente tem um curso de foco bem mais longo, por volta de 270 graus. Fica bem mais preciso, especialmente nas situações de close-focus. Outra coisa que às vezes atrapalha é o fato de que algumas objetivas da Canon tem o anel de foco infinito, ou seja, quando você chega à marca de infinito o anel continua rodando e você perde suas marcas de foco no follow focus.

Outro assunto a se considerar é a monitoração. Nós estávamos trabalhando no piloto com a câmera como se fosse uma situação de cinema mesmo. A maioria das tomadas foram feitas com tripé e kit da RedRock com parassol e Follow Focus. Contamos com um monitor Marshall de 8” e um Panasonic de 17”, mais um conchinha Sony que gravava Video Assist.  Então o processo era: eu ligava o Marshall em HDMI na câmera e iluminava, enquadrava etc. Ele provê uma imagem bacana mas quando se liga qualquer monitoração externa na 5D, o display LCD é desligado. Na hora de rodar a gente ligava o Marshall na porta de Video Composto e dividíamos o sinal para mandar para o monitor do diretor. Essa porta de Video Composto só manda sinal standard, então ficávamos sem monitoração HD. Mesmo a porta HDMI manda HD enquanto a câmera não está rodando, mas quando você aciona o “Rec” ela dá um downsize no sinal também para Video Standard. Enquanto roda, só Vídeo Standard.

Ainda nessa parte de monitoração, outra questão é a ausência de um Histograma ao vivo. Ela só mostra Histograma de cenas já gravadas, na hora do playback. A solução que encontrei foi rodar pequenos trechinhos para poder checar a exposição no Histograma em playback . Logo parei de usar o fotômetro pois achei o histograma mais preciso para esse sensor e ele também me alertava para situações de clip de altas e baixas luzes.


“BRILHANTE FUTEBOL CLUBE”

Posso ter parecido meio negativo falando de todas essas limitações que a 5D MarkII tem. Na verdade eu acho um equipamento legal e esse caminho das HDSLR me parecem uma vertente bem interessante entre as outras todas possibilidades e formatos do Cinema Digital. É um equipamento que precisa, e certamente vai ser aprimorado, mas vários aspectos legais: a leveza, a coisa de você poder descarregar no seu computador pessoal e ver a imagem final no intervalo do almoço, etc.

No começo a ideia era filmar a série com uma Sony EX3 com adaptador Pro35 da P+S Technik. Esse formato tinha sido usado na produtora (Mixer) para outro projeto, “Descolados” para a MTV e o resultado ficou muito bom.  No entanto quando conversamos Kiko e eu, ficamos afim de usar a Canon 5D MarkII. Expus para ele todas as limitações que ela tem, falei sobre as especificações mas propus, antes de mais nada, de fazermos um teste para ver se a gente ia gostar da cara da imagem para esse projeto.
As especificações são uma coisa e o look da câmera é outra. Fizemos um teste com as duas câmeras. Apesar das tecnologias bem diferentes, eu diria que são duas concorrentes meio emparelhadas. As duas tem um data rate de 35Mb/s, então o nível de compressão é meio parecido.  A 5D tem uma estroboscopia mais dura nas pans e a EX3 tem um blur de movimento que abaixa a resolução e às vezes é muito pronunciado. Elas eram diferentes e para esse projeto escolhemos a 5D. Eu disse ao Diretor e à Produção Executiva que teríamos que nos adaptar às limitações da câmera e eles, valentes, compraram a briga. Levamos também para a filmagem uma EX3 para fazer uns slows e etc.

Ao fim, achamos que os desfoques e a praticidade da câmera para trabalhar em locações apertadas deram uma cara diferente para o piloto.

AS FILMAGENS

A série fala sobre um time de futebol feminino de adolescentes no interior de Minas Gerais. O Kiko escolheu a cidade de Santa Rita do Sapucaí e o elenco contava com vários não-atores. A missão era de cumprir 6.5 páginas de roteiro por dia. Algumas variantes, pouco tempo e a gente usando um formato que ainda não tinha um workflow muito claro. No fim deu tudo certo. As meninas foram super bem preparadas. A filmagem foi corrida mas conseguimos cumprir bem.

A câmera foi testada em vários desafios: jogo de futebol no sol em que tínhamos situações nas quais a câmera começava filmando a favor do Sol e terminava de contra (no limite de latitude, mas segurou), interiores com exterior superexposto em quadro, movimentos sofisticados de câmera, cenas de alto contraste no pôr do sol,  noturnas num baile que ficaram super bem balanceadas numa situação mais controlada.

Noventa por cento do tempo usei três zooms da Linha L da Canon : 16-35mm, 24-70mm e 70-200mm, todas T2.8. Estava também com meu jogo de Leicas R (28mm T2.8, 35mm T2.0, 50mm T2.0, 90mm T2.8, 135mm T2.8, 180mm T4) mas elas foram usadas pouquísimas vezes graças ao ritmo de 6.5 páginas por dia. Exteriores, filmei a ISO 100 e diafragmas T5.6 ou T8, usando NDs. Interiores dia, filmei usando ISO 200 a 320 e, normalmente a T2.8 ou T3.2. Já os interiores e exteriores noite, filmei a ISO 320 ou ISO 500 e também a T2.8 ou T3.2. Naquilo que foi iluminado, basicamente interiores, usei Kino-flos e alguns HMIs pequenos. Fizemos uma câmera gripada no carro que foi num momento corrido de fim de dia mas ajudou o fato da câmera ser muito mais leve que uma de cinema tradicional.

CONCLUSÕES

Ainda acredito que o melhor formato para captação de ficção é o 35mm. A resolução é a melhor, a latitude dos novos negativos chega a 13, 14 stops, tem um workflow estabelecido e que vem sendo aprimorado por mais de cem anos. É claro que muitos projetos não têm condição financeira de bancar o 35mm. Então fico muito feliz de ver que o Cinema Digital está correndo, trazendo câmeras cada vez melhores e mais “cinematográficas”, fica sendo uma segunda opção que melhora a cada dia. Não sofro por trabalhar com essas câmeras. Só não se pode fingir que as limitações não existem. E o formato tem que ser o certo para cada projeto. Nesse âmbito acho que muitas câmeras HDSLR melhores vão surgir, espero que com features mais profissionais (robustez, saída HDMI ou HD-SDI limpa, Histograma ao vivo, mais de uma saída de video funcionando simultaneamente, entrada de Timecode, gravação em RAW, etc) e com uma imagem menos comprimida – o que me parece ser uma questão de processamento já que o sensor consegue captar uma imagem em RAW e com muito menos
compressão quando se fala no still.

Temos que nos encantar mas sempre entendendo que não existe mágica. Há o tempo do desenvolvimento e sempre vamos precisar do talento das mesmas pessoas. No final, o que conta é o que está na frente da câmera: os atores, a Direção de Arte, a Iluminação, o Roteiro, o Tom da Direção. As ferramentas são as mesmas , o diferencial é a Arte e o Talento de quem faz.
Fotos e fotogramas gentilmente cedidos por Mixer e Kiko Ribeiro.

Fonte: ABCINE

Artigos recentes